terça-feira, 22 de janeiro de 2013

O Marido Humilhado: Histórias Inéditas da Vida Como Ela É, Nelson Rodrigues

Ficha Técnica

Gênero: Contos
Ano de lançamento: 2008 (?)
Ano desta edição: 2008
Editora: Agir Editora / Selo Pocket Ouro
Páginas: 176
Idioma: Português

Citação: "- 'Então, como é isso? Você continua com esse namoro? Fala! Continua?'
A menina começou, já fazendo beicinho:
- Papai! Eu gosto dele, papai! Gosto!
Não se descreve o horror do velho: - 'Ele te bate e tu gostas dele!' Estendia para a filha as duas mãos calejadas:
- Te deu na cara, minha filha, e a cara é sagrada!
Malvinha soluçava: - 'Gosto! Gosto!' Dr. Euvaldo já não entendia mais nada. A filha sai. Volta-se para a mulher que, estupefata, assistia à cena: - Minha filha saiu a quem? A mim, não foi, que eu não gosto de apanhar! E se não foi a mim, foi a ti! Responde! Foi a ti que ela saiu? Gostas de apanhar? Gostas?"


Em 2012 completaram-se 100 anos do nascimento de Nelson Rodrigues. Muitas exposições e homenagens foram feitas a um autor polêmico, seja em seus contos, suas peças de teatro, e até mesmo quando comentando futebol (uma de suas grandes paixões). Para a TV foram também muitas adaptações, sendo talvez a mais famosa a adaptação de seus contos na série "A Vida Como Ela É", exibido nos anos 90 como um quadro do Fantástico, e que teve alguns episódios re-exibidos também ano passado:


Entre 1951 e 1961 mante no jornal Última Hora a coluna "A Vida Como Ela É", que rendeu um livro do mesmo nome, e que ainda dispunha de material para outros livros, caso deste "O Marido Humilhado".

Para quem assistiu a série da Globo (se não, procure no youtube), a temática do livro é a mesma: relacionamentos adúlteros, paixões obsessivas, ciúmes incontroláveis. Junte-se a estes temas básicos a capacidade absurda para criar tipos incomuns de Nelson Rodrigues, e terá um prato cheio: a garota fria, que só se excita com beijos na orelha esquerda; a menina de 17 anos, obcecada com um homem mais velho e que, desprezada, aproxima-se da filha dele, que tem sua idade; o casal que se excita ao proferirem xingamentos contra o noivo da mulher infiel; o menino, criado pela prima 17 anos mais velha, que vai se apaixonando perdidamente por ela enquanto cresce; a garota que cobiça o noivo da irmã mais velha, pois acredita que esta o roubou dela; o rapaz de família tradicional que se apaixona por uma garota do subúrbio, e causa protesto de seus pais; o marido que ouve que sua mulher o trai, mas que quer ouvir a final da copa de 58 antes de decidir o que fazer; um genro e sua sogra, inimia mortal; e por aí vai. São 20 contos, todos curtinhos, pois eram publicados no jornal, o que dá um padrão de desenvolvimento a todos, e também uma concisão que culmina com Nelson Rodrigues deixando para as últimas linhas (últimas mesmo!) a conclusão do conto, muitas vezes com uma desfecho inesperado e chocante.

Os contos trazem uma imagem de um Rio de Janeiro bucólico, e muito charmoso, retratando famílias tradicionais da classe média, pessoas do subúrbio, uma outra época, e com outros costumes também. Ao ler o livro até parece que todo mundo dava seus pulinhos de cerca, tão comuns são os relatos de traição. E sem contar que Maria da Penha iria passar um mal bocado no Rio de Janeiro de Nelson Rodrigues, onde dar uns bofetes na mulher não só era prática comum, como prova de amor, e altamente recomendado ("Deu uma surra na mulher? Está curado, minha senhora, está curado! Meus parabéns!").

Ao final da leitura, fica claro que há um tema comum a todos os contos do livro, e ele está bem exposto no título: a humilhação a que as pessoas são expostas, ou a que se sentem expostas. E que este tema levará, quase sempre, há um outro, muito mais radical: a vingança, muitas vezes cruel e dolorosa, em alguns casos simplesmente prazerosa. No final das contas, "A Vida Como Ela É" nunca é aquilo que gostaríamos que fosse.

sábado, 19 de janeiro de 2013

Blueberry Girl, Instructions e The Dangerous Alphabet / O Alfabeto Perigoso - Neil Gaiman, Charles Vess, Gris Grimly

Ficha Técnica

Título original: Blueberry Girl
Ano de lançamento: 2009
Ano desta edição: 2009
Editora: Harper Collins
Páginas: 32 (não numeradas)
Idioma: Inglês

Citação: "Help her to help herself, help her to stand,
help her to lose and to find.
Teach her we're only as big as our dreams.
Show her that fortune is blind."


Blueberry é, como todas as berries, uma frutinha vermelha, conhecida em língua portuguesa como mirtilo. O título faz referência ao fato dessa frutinha ser um símbolo de eternidade e otimismo para o futuro. Neil escreveu este poema para uma amiga, que estava grávida de uma garota, como um presente. Posteriormente, ele veio a ser ilustrado pelo magnífico Charles Vess (que já havia trabalhado com Gaiman na versão ilustrada de "Stardust"), e publicado pela Harper Collins. O livro também tem uma edição nacional (com um título muito bem traduzido para "Menina Iluminada"), lançado pela Rocco, mas que só tomei conhecimento após comprar a versão importada. Não vi a edição nacional, portanto não tenho como comentar sobre a tradução.

 

O livro traz um poema rimado, com uma espécie de prece para esta menina que está por nascer. É um livro infantil, portanto curto, cheio de ilustrações, e que não leva mais do que dez minutos para ser lido (parando para admirar a arte embasbacante de Vess no caminho); para quem é fã de Gaiman, fã de arte, ou uma grávida à espera de uma garotinha, é uma leitura excepcional (eu acredito preencher dois dos três requisitos citados).



Ficha Técnica

Título original: Instructions
Ano de lançamento: 2010
Ano desta edição: 2010
Editora: Harper Collins
Páginas: 40 (não numeradas)
Idioma: Inglês

Citação: "In the clearing beyond the castle the twelve months sit about a fire, warming their feet, exchanging tales.
They may do favors for you, if you are polite."


"Instructions" é um texto de Gaiman que já havia sido publicado em 2000, mas que foi especialmente ilustrado por Charles Vess para esta edição da Harper Collins. E o livro é isto mesmo que o título resume: instruções. Instruções para um aventureiro que irá adentrar um mundo mágico com bruxas, dragões, perigos e emoções à frente. Por isso mesmo, repleto de imperativos com instruções de como se sair bem em sua jornada: "Ride the wise eagle (you shall not fall). Ride the silver fish (you will not drown). Ride the grey wolf (hold tightly to his fur)." De novo, a arte de Vess complementa o texto de Gaiman como se eles tivessem nascido um para o outro (a arte e o texto, fique bem claro). É uma pena que "Instructions" não tenha uma edição em português.


O ser meio felino, meio humano, que entra pela porta, é o aventureiro presente em todas as ilustrações de Vess para o livro.


Ficha Técnica

Título original: The Dangerous Alphabet
Ano de lançamento: 2008
Ano desta edição: 2008 / 2011
Editora: Harper Collins / Editora Rocco
Páginas: 32 (não numeradas)
Idioma: Inglês / Português (tradução e adaptação de Leonardo Villa-Forte)

Citação: "A is for Always, that's where we embark;
B is for boat, pushing off in the dark;
C is the way that we find and we look;
D is for diamonds, the bait on the hook"

"A é para Até Logo, é onde embarcamos;
B é para bote, em direção ao escuro zarpamos;
C é o caminho que temos à vista;
D é para diamantes, no anzol está a isca"


As capas americana e brasileira


"The Dangerous Alphabet" é mais um poema de Gaiman, e muito gostoso de se ler. Desta vez, ilustrado por Gris Grimly, que tem uma arte bastante angulosa, e bem sinistra, por sinal.



O poema é sobre sair em aventuras! A arte de Grimly mostra um casal de irmãos, juntos com sua gazelinha de estimação, seguindo os versos do poema. O poema não é explicitamente sobre eles, mas a arte de Grimly interage com os versos muito bem, criando um complemente fantástico para o texto de Gaiman. Apesar de retratar muitos bichos rastejantes, um barquinho que navega por um córrego subterrâneo (que eu costumo chamar de esgoto), a arte de Grimly é muito bonita; só não sei se é recomendada para o seu filhinho antes de colocá-lo pra dormir. Destaque para a introdução que diz que "o alfabeto não é confiável e tem uma perigosa falha que um leitor com olhos de lince poderá perceber"; a tal falha é uma pegadinha, e que pode ser divertido para as crianças procurarem (e praticarem o alfabeto para encontrá-la).


Como eu possuo tanto as edições americana e brasileira deste livro, posso comparar: realmente, traduzir um poema rimado, e que ainda tem uma arte conceitual que dialoga com o mesmo, não é fácil, mas o tradutor Leonardo Villa-Forte se saiu bem nesse quesito (em especial na letra L, que com sua licença poética ficou até mais interessante que o original; e na letra W, por total escassez de vocábulos em nossa língua, uma gambiarra que deu pra salvar o que estava quase perdido). Mas tenho que criticar a tradução da biografia dos autores, adaptada e com algumas piadinhas retiradas, e um sonoro erro de tradução da palavra "soundly" (trocadalho intencional) na introdução. 

Outra coisa que merece destaque é o acabamento das edições: a americana é em capa dura, com uma folha que contém a mesma ilustração da capa (os outros dois livros resenhados também têm este acabamento); este ainda tem o título do livro em relevo na folha de capa. Já a edição nacional é em capa mole, sem relevo. As páginas da edição americana são mais brilhantes, enquanto as da brasileira são foscas, e tem cores ligeiramente mais escuras. E as duas têm praticamente o mesmo preço. Será que a aquisição dos direitos de publicação e a tradução custam tão mais assim? Seria um efeito de uma tiragem muito menor do que é possível lá fora? Realmente, não sei. Mas se você for falante de inglês, eu recomendaria a edição americana, sem sombra de dúvida.

Eu já havia lido que a boa literatura infantil é aquela que não cai simplesmente sob este rótulo; ela é capaz de entreter qualquer pessoa, de qualquer idade, sem subestimar a criança, sem aborrecer o adulto. E os livros aqui resenhados, com sua linguagem simples e acessível aos pequenos, são também ótimo entretenimento aos mais crescidos, que mantém suas crianças interiores escondidas para estes momentos solitários de deleite literário.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Continhos Galantes, Dalton Trevisan

Ficha Técnica

Gênero: Contos
Ano de lançamento: 2003
Ano desta edição: 2010
Editora: L&PM Editora
Páginas: 104
Idioma: Português

Citação: "- Agora de pé.
- Será?
- Aperte as pernas. Mexa. Suspire. Grite.
- Não sei.
- Não sabe dançar? Então dance. Sem sair do lugar.
Salve lindo pendão da esperança, salve, salve.
- Veja, estou tremendo. Será de...? Tão diferente.
Testinha úmida, revirava o branco do olho, o pescoço ondulante de cisne, a língua rolando no céu da boca.
- Desculpe a unhada.
Na hora nem sentiu, depois saiu sangue.
- O que você fez, querido? Ai, amor...
Vingado, eu, que nunca podia dançar com a moça mais alta. O baixinho de todas as paixões e nenhuma correspondida. Pardal nanico, por todas as tijiticas perseguido.
- Veja o que me fez. Minha mão, olhe, ainda treme. Ai, amorzinho.
Brilho no céu em raios fúlgidos o brado mais retumbante que ouviram do Ipiranga as margens plácidas."


Dalton Trevisan, o Vampiro de Curitiba, selecionou ele mesmo os contos que fazem parte desta coletânea. E, olha, selecionou muito bem. O livro é recheado de luxúria e sedução em 14 ótimos contos de um autor considerado mestre neste tipo de narrativa.

O livro começa com "Na pontinha da orelha", onde Nelsinho, o próprio vampiro de Curitiba, em uma aventura de sua adolescência, visitando Neusa, tenta ludibriar a vó e guardiã da moçoila ("Mudá-la para o sótão. Acaba rolando da escada") para poder trocar o óleo.

Em "O Roupão", uma esposa adúltera e um amante desconfiado num encontro furtivo, com talvez alguém na platéia... O interessante de Trevisan é construir, em menos de 10 páginas, personagens complexos, com histórias, medos e frustrações, pequenos desvios de caráter, seus desejos e esperanças.

Em "Cafezinho com sonho", um chefe dando em cima de sua funcionária durante o expediente (não é assédio se for de comum acordo, creio eu). Trevisan mistura o pouco que há de narração neste conto (são praticamente só diálogos), com as impressões do doutor Osíris ("um tanto afogueada, arzinho desafiante de riso - essa já perdeu o respeito"), não se preocupando com formalismos; o resultado sempre é gostoso de ler, como as investidas em dona Laura.

"Os mil olhos do cego" já foi comentado aqui, e trata de dois amigos que se reencontram, um deles bem disposto a "apimentar" a relação dos dois.

Em praticamente todos os contos do livro, um pouco de sedução, perversão ou luxúria: em "O Matador", um homem se encontra com sua amada, "99 quilos de carne branca", para uma noite de libertinagem. Em "Peruca loira e botinha preta", um casal de amantes une-se para um último encontro furtivo: ela, somente com um casado a cobrir seu corpo nu, para satisfazer seu amado, mas morrendo de medo do marido; ele, pronto a fazer tudo que não pode em casa ("Quer mais, sua cadela? O quê? Senhora honesta? Não me faça rir"); quando se encontram novamente, a conclusão é simplesmente genial.

Um marido boêmio, um velhinho safado em confidências com seu médico ("As mais crescidas sabem tudo. Menina... a gente que ensina"), confissões de donas de casa atrevidas ("Foi lá uma tarde consertar o balcão. Eu passava pela sala, sentia o olho atrás de mim. Mulher sabe, ela adivinha. Não foi dita uma palavra. Voltei da cozinha, olhei aquele braço mais peludo. Me deu uma coisa. [...] A cama estava perto, só fechamos a porta"), um conserto de chuveiro que aproxima dois velhinhos ("Vou com tudo, ela recebe num longo suspiro. Entro com firmeza. Aí geme e pede pra morrer. [...] Quer mais? Castigo sem dó. Que se farte, a avozinha"), um advogado safado e uma cliente manhosa ("No meio das pernas um botão chamado cli-tó-ris. Ali é que meu dedinho ia bulir"). Os feromônios exalam das páginas, e Trevisan não deixa ninguém de fora de sua orgia literária.

Sem nunca deixar uma leve ironia pairando ao fim de cada conto, Trevisan não é óbvio, nem vulgar, não prega falsos moralismos, e excita a imaginação de quem gosta de boa literatura.

O Vampiro de Curitiba, Dalton Trevisan

Ficha Técnica

Gênero: Contos
Ano de lançamento: 1965
Ano desta edição: 2012
Editora: Editora Record
Páginas: 126
Idioma: Português

Citação: "- Suas formas, pelo que vejo, são ideais. Qual é o manequim?
- Quarenta e quatro em cima. Depois alarga para quarenta e seis.
- De busto?
- Noventa e três.
O herói fechou o olho: Ai, que beleza! Ai, que bom, noventa e três!
- De quadris?
- Pouco mais.
- Noventa e cinco?
- É.
Ó, Deus do céu, noventa e cinco!"


"O Vampiro de Curitiba" não é um sanguessuga noturno, que bebe o sangue das artérias de suas vítimas, muito menos um rapaz branquelo com cara de tonto que brilha à luz do sol, vamos deixar bem claro. Ele é um galanteador, um assanhado, um comedor, um sem caráter, petulante, e quaisquer outros adjetivos afins. Nelsinho, o único personagem comum a todos os contos desse livro, só tem um objetivo: desfrutar do mundo o que ele tem de melhor a oferecer, e isso tem um nome - mulher! Trevisan conseguiu criar um personagem tragicômico neste livro - cômico em sua persistência, às vezes ridícula, na arte do flerte, e até mesmo a falta de senso de ridículo em algumas escolhas que faz; trágico em algumas desventuras, em seu caráter às vezes questionável, em seu desrespeito a algumas mulheres.

Trevisan varia o foco narrativo da 1ª para a 3ª pessoa em alguns contos, mas quando utiliza-se da 1ª pessoa entramos em contato com a personalidade conflitante de Nelsinho: sempre evocando Deus, mas com falhas de caráter visíveis... No primeiro conto, "O Vampiro de Curitiba" se apresenta ao andar pelas ruas da cidade e comentar sobre as mulheres ao seu redor... Seu relato é um mixto de súplica e lascívia ("Gênio do espelho, existe em Curitiba alguém mais aflito que eu? Não olhe, infeliz! Não olhe que você está perdido.") e quase é possível sentir pena de Nelsinho. Mas isso é só até o segundo conto com "nosso herói", tratamento usado diversas vezes por Trevisan durante o livro, pois é isso que Nelsinho é: o herói do macho comum, intrépido desbravador das intimidades femininas, tarado, safado e intrometido. Pois em "Incidente na loja" ele não só mente descaradamente na empresa, dizendo que podia se atrasar no almoço por estar recebendo um parente que chegava de viagem, como escolhe sua vítima (sem aspas mesmo: "É ela. Obrigado, Senhor. Eu não mereço"), desvia de conhecidos para não dar bandeira, e não se faz de rogado à primeira oportunidade de agarrar à força a mocinha, depois de ajudá-la a (quase) abrir a loja em que trabalha; consumado o ato, consentido ou não, Nelsinho pode se vangloriar de algo: conseguiu, mesmo com toda a ação, bater o ponto no horário.

Com muitos encontros furtivos, Nelsinho também se encontra em situações indesejadas. O encontro com a antiga professora em "Visita à professora" acontece de maneira totalmente oposta ao que ele esperava, mas o bravo guerreiro não foge à luta; Nelsinho é um gentleman, não pode deixar de marcar pontos sob o risco de manchar sua reputação, apesar de não muito propenso a fazê-lo ("Na sombra distinguiu a cama, os dois travesseiros, a dona inteirinha nua. Suplicante, estirou-lhe os braços, crispando os dedos no vazio. Irresoluto, o moço apoiou o joelho na cama"). Em "As Uvas", Nelsinho acaba tendo que enfrentar o maior terror dos homens: sua falta de virilidade na alcova; em "A Noite da Paixão", desesperado por uma companhia ("Dobrando a esquina, deu com a pracinha do bebedouro antigo - onde as mariposas?"), acaba encontrando uma companheira "profissional" dentro da igreja. Não acaba sendo bem o que queria: na furtividade do tratamento na igreja, só percebe ao chegar ao hotel que a garota é desdentada. De novo, Trevisan utiliza-se das imagens religiosas para delinear mais um pouco do caráter dúbio de Nelsinho ("Com susto, descobriu que era banguela. Nem um dente entre os caninos superiores - terei de beber, ó Senhor, deste cálice?").

Trevisan também coloca alguns contos com o Doutor Nelson, homem casado, advogado, que nem por isso deixa de flertar com mocinhas, ou pior ainda (ou deveria dizer "melhor ainda"?), com suas clientes. Em "Menino Caçando Passarinho" as investidas do Doutor são hilárias ("Aqui no escritório muita interrupção. Levo os papéis a um lugar sossegado. No hotel da estação, está bem?"). No não comparecimento da mulher, novas investidas ("Sentados no sofá [do escritório], a bela concedeu-lhe a mãozinha, que cobriu de beijos inflamados. 'Olhe que eu saio.'"). O resultado acaba sendo uma lição para aqueles que não perseveram em seus objetivos. Doutor Nelson é um trabalhador.

Em se tratando de falta de caráter, Nelsinho faz pior: ao flertar com uma mulher adúltera e receber uma negativa, ele trama uma vingança que envolva todos os membros do triângulo amoroso em "Último Aviso"; em "Chapeuzinho Vermelho", ao ser enxotado do quarto de sua pequena, acaba, ao tentar sair do apartamento escuro, no quarto da mãe dela, uma senhora gorda, que de tanto se insinuar, o fazia se questionar: "Era a avozinha ou, no quimono fulgurante de seda, o próprio lobo?". O resultado final não é de surpreender; e em "Debaixo da Ponte Preta" Trevisan narra, novamente, um estupro: uma garota negra de 16 anos é estuprada por seis homens (entre eles, um garoto de 13 anos chamado Nelsinho). Trevisan utiliza-se de uma linguagem bastante jornalística, narrando os fatos sob o ponto de vista de cada um dos envolvidos (a garota, o policial que a encontrou, os seis estrupadores), com todas as discrepâncias que as histórias deles possam ter entre si, se comparadas, como se tivesse tomado o depoimento de cada um deles. Simplesmente genial.
As orelhas do livro estão recheadas de críticas positivas aos contos de Dalton Trevisan, todas elas publicadas em jornais americanos, como o New York Times, o que só comprova a qualidade de um dos maiores contistas brasileiros, junto com um dos personagens mais singulares da literatura nacional.

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

O que aconteceu ao homem mais rápido do mundo?, Dave West e Marleen Lowe

Ficha Técnica

Título original: Whatever Happened to the World's Fastest Man?
Gênero: Quadrinhos / Ficção
Ano de lançamento: 2009
Ano desta edição: 2010
Editora: Gal Editora
Páginas: 64 (não numeradas)
Idioma: Português (tradução de Eliane Galucci e Maurício Muniz) 

Citação: "Bobby não era um herói. Se confrontado por um assaltante, entregaria de bom grado seus objetos de valor. Confrontado pela morte em tal escala, porém, Bobby sabia o que tinha de fazer."



Comprei a revista pelo título (ao qual me referirei a partir de agora por "OQAAHMRDM") e pela capa, que é diferente. E não me arrependi nem um pouco. Para começar, é uma revista independente que ganhou vários prêmios na Europa; é em preto e branco; e tem uma abordagem diferenciada sobre os super-heróis.

Começando do começo: a revista tem na capa, capa interior, e contra capa, notícias fictícias sobre o "homem mais rápido do mundo". Notícias essas que são relevantes para criar o clima da história e dar um ar de verossimilhança à trama (afinal, estamos falando de um homem com super-poderes aqui!).

Mas não é nada tão simples quanto parece ser. (E fazer esta resenha sem dar spoilers também será difícil, mas entregar o mínimo que seja sobre a história é estragá-la toda, e este livro merece ser lido para causar surpresa em toda a evolução da história). Pois bem, Bobby Doyle, o tal homem mais rápido do mundo, tem poderes de natureza diferente dos quais você provavelmente está pensando. Mas isso não faz com que ele seja menos heróico. Quando ele descobre que uma bomba irá destruir uma grande área de Londres, no meio de uma segunda-feira, ele não pensa duas vezes em tentar salvar as pessoas. Mesmo que isso possa custar sua existência (de uma maneira mais profunda que você possa estar pensando).


O homem mais rápido do mundo tem que lutar contra o tempo para salvar todo o tipo de pessoa, e nesse ínterim ele reflete sobre a solidão que sente, e sobre a possibilidade de felicidade das vidas que ele está prolongando com o salvamento. Ele não deixa de perguntar às pessoas, "e aí, o que estão achando da cidade?", mesmo sabendo que não terá tempo para ouvir a resposta.

É impossível ler "OQAAHMRDM" e não se sentir pequeno, egoísta, tocado por tamanho altruísmo e dedicação que Bobby Doyle demonstra. Não é uma pessoa que se sacrifica, e sim o sacrifício de uma vida! (E isso já é spoiler o suficiente! Se não entendeu - espero que não - compre a revista e seja feliz!). Acredito que essa revista possa apelar a todos os tipos de gostos, desde uma criança até sua namorada que acha que quadrinhos é coisa de nerd idiota. Garanto que todos vão se emocionar (todos com um mínimo de sensibilidade, pelo menos).

Como extras, o livro ainda conta com uma introdução exclusiva do roteirista Dave West para a edição brasileira, além de uma história curta com um Bobby Doyle ainda criança, que nunca havia sido publicada junto com "OQAAHMRDM" antes, e alguns pin-ups.

Para finalizar, um trailer produzido pela Gal Editora:

Wilson, Daniel Clowes

Ficha Técnica

Título original: Wilson
Gênero: Quadrinhos / Crônicas
Ano de lançamento: 2010
Ano desta edição: 2012
Editora: Companhia das Letras / Quadrinhos na Cia
Páginas: 82
Idioma: Português (tradução de Érico Assis) 

Citação: 



"Wilson" é uma HQ genial! Contada em mini crônicas de uma página, que unidas contam a história de um cara pouco sociável (não por falta de tentativas dele). Na verdade, Wilson é simplesmente sincero demais. Sincero de uma maneira que as pessoas à sua volta não gostam. Ele puxa assunto com pessoas no bar, no aeroporto e não se faz de rogado quando tem que emitir sua opinião sobre o assunto (ou, se ignorado, não pensa duas vezes antes de falar "estou falando com você, seu cuzão).


A arte de Clowes vai de algo que se aproxima do realismo até algo totalmente caricato, fofinho até; o que é um tremendo contraste com o personagem principal, com seus comentários ácidos que não perdoam absolutamente ninguém que não pense como ele.


Após a morte de seu pai, Wilson começa a refletir sobre sua vida e vai tentar amarrar algumas pontas soltas do seu passado, como o relacionamento com sua ex-mulher. Com sua delicadeza de um elefante numa loja de cristais ele consegue de tudo, e critica todos os aspectos de uma sociedade doente (mas da qual ele não se exclue): internet, religião, materialismo, relações familiares, nada escapa a Wilson. E, se for preciso mandar uma caixa cheia de bosta de cachorro pelos correios para enviar uma mensagem, pode ter certeza de que ele o fará.

De leitura rápida, "Wilson" vai fazer você dar algumas boas risadas, algumas delas de si próprio, pois você com certeza se enxergará no lugar de uma (ou umas) das pessoas abordadas e criticadas por Wilson. Ele é o porta-voz do homem-médio que se sente incapaz de mudar tudo o que está errado, mesmo nele próprio, mas não deixa de se manifestar.

A odisseia de Wilson termina de maneira poética e subjetiva, aberta à interpretação de cada um. Talvez a interpretação de cada um, em momentos diferentes de suas vidas, possa ser diferente. Sacada de mestre de Clowes, que fechou com chave de ouro a história.

Vale a pena também ler a coluna de Érico Assis no blog da Cia das Letras, onde ele explica o método de que se utilizou para traduzir "Wilson". É outra diversão à parte, e demonstra também o cuidado na tradução e preparação da obra pela editora.

No final da leitura, acho que só fica uma certeza: você certamente terá uma opção de nome a menos caso você tenha um filho homem.

Astronauta: Magnetar, Danilo Beyruth

Ficha Técnica

Gênero: Quadrinhos, Ficção Científica
Ano de lançamento: 2012
Ano desta edição: 2012
Editora: Panini Comics
Páginas: 82
Idioma: Português

Citação: "Se você está decidido a viver só, é assim que vai morrer. Você escolheu deixar tudo para trás, mas não há felicidade na solidão."


Essa graphic novel que dá uma nova roupagem ao astronauta (personagem de Maurício de Souza) é uma grata surpresa. Com um número "1" na capa, ela nos dá uma esperança de que outras seguirão. Esperamos que sim, já que esta releitura perpretada por Danilo Beyruth foi muito bem feita.

Confesso que desconhecia o trabalho do artista, mas algumas recomendações me fizeram querer ler esta história. Disponível em capa dura nas livrarias, e em capa cartonada em algumas bancas de jornal, decidi pela segunda por ser mais barata. E até que foi uma decisão sábia, conforme explicarei em seguida.

Astronauta: Magnetar conta a história de uma missão do astronauta perto de um magnetar, resumidamente um quase-buraco negro, quando sua nave é danificada e ele é obrigado a tentar consertá-la, com parcos recursos. Danilo Beyruth fez uma ótima pesquisa e consegue explicar bem alguns conceitos técnicos para os leigos (eu incluso), e tal pano de fundo só engrandece a obra.



Sua arte também é admirável. É um traço simples sem ser pobre, e traz detalhes suficientes sem poluir demais os painéis. E as cores adicionadas pela Cris Peter complementam magistralmente a arte. Foi realmente agradável acompanhar sua técnica narrativa. Méritos para os painéis onde ele demonstra a rotina do astronauta na nave; foi uma solução inteligente e elegante, sem precisar de quase nenhuma palavra para demonstrar o enfado de uma rotina repetitiva.


Um painel duplo do Astronauta no espaço

Até aí, tudo ótimo, e me arrisco a dizer que Beyruth esteve perto de lançar uma HQ para figurar na lista de melhores do ano, disparado. Mas eu fiquei com uma impressão de que o final é muito abrupto, e que a história tinha mais a oferecer. Só posso especular que: a) Beyruth ficou sem imaginação ou sem saber como acabar a história, resultando naquele final apressado; b) o prazo para entrega era curto, e ele escreveu as últimas páginas às pressas; ou c) ele tinha somente 82 páginas para trabalhar, e isso não era o suficiente para ele contar a história que ele pretendia. Acredito que, com mais 20 páginas, ou mesmo com mais uma edição de 82 páginas, Beyruth poderia ter produzido algo grandioso. E é por isso que não fiquei chateado de ter comprado a versão em capa cartonada. Do contrário, fosse a história extendida e complementada, acho que a versão capa dura seria algo essencial.

No final, ele conseguiu produzir uma HQ legal, transformar o Astronauta num personagem adulto e complexo, e quem sabe abrir um nicho nas histórias dos personagens de Maurício de Souza que poderá render bons frutos num futuro próximo. Aguardo por mais coisas de Beyruth, e pelas próximas Graphic MSP.

Guerra Conjugal, Dalton Trevisan

Ficha Técnica

Gênero: Contos
Ano de lançamento: 1969
Ano desta edição: 2006
Editora: Record
Páginas: 187
Idioma: Português

Citação: "Sendo o senhor meu marido um manso sem-vergonha, logo venho buscar as meninas que são do meu sangue, você bem sabe que do teu não é, não passa de um estranho para elas e caso não fique bonzinho eu revelarei o seu verdadeiro pai, não só a elas como a todos do Buraco do Tatu, digo isso para deixar de ser nojento correndo atrás da minha saia, só desprezo o que eu sinto, para mim o senhor não é nada."


Dalton Trevisan é comumente tratado por "o vampiro de Curitiba" (título de outro livro seu), e este livro dá o tom disso. "Guerra Conjugal" reúne contos diversos protagonizados por casais diferentes (e, em muitos casos, insólitos). Os contos são ambientados em Curitiba, como era de se esperar, na década de 60; uma época em que tradições eram mais valorizadas, e que os costumes e hábitos eram bem diferentes.

Trevisan tem uma escrita que é pomposa, mesmo quando representa gente simples: a mulher que trai o marido, o marido que bate na mulher, o marido que não dá no couro, que bebe demais, a mulher adúltera, o amigo cobiçoso da esposa do próximo; casos cotidianos dos subúrbios de qualquer grande cidade. Para enfatizar isso, Trevisan utiliza-se de um recurso interessante: todos os protagonistas dos contos são João e Maria, como centenas que existem por aí, protagonizando seus pequenos infernos domiciliares, vivendo em seus mundinhos medíocres.
Em alguns contos, o roteiro torna-se repetitivo, um ranço de "eu já li essa história antes", o que torna a leitura enfadonha ocasionalmente; em outros casos, como em "A Normalista", uma visita a um prostíbulo acaba revelando-se algo muito maior, com um final que surpreende. 
A partir da metade do livro há uma grande melhora. É quando Trevisan varia um pouco os temas, trazendo visões perturbadoras sobre assuntos tabu, que nem todo mundo se atreveria a escrever sobre: em "Idílio Campestre", uma menina acaba acuada por um homem, e é estuprada. Trevisan não entra em detalhes, mas o choque de tal ato é compensado por uma escrita que consegue demonstrar beleza até mesmo em um ato tão vil ("Ele a agarrou, derrubou, nela se deitou. A menina chorou, gritou, chamou o nome de Deus. Ele apertava a garganta, deixando-a sem ar. Rasgou-lhe o vestido, de tanta dor ficou cega.").

Em "A Traição da Loira Nua", um marido traído recorre a meios não ortodoxos para restaurar sua honra, e em "A Noiva do Diabo" uma conversa entre padrinho, comadre e enteada toma rumos inesperados ao discutir o casamento da última. Como em "A Normalista", Trevisan deixa para o último parágrafo um desfecho surpreendente, seja para causar risos ou sobressaltos, dando grandeza aos contos. Em "Batalha de Bilhetes", um casal já idoso deixa de se falar, e passa a se comunicar somente por recadinhos. Orgulho e teimosia idosa com doses esparsas de ironia.

Como se tal não fosse chocante o suficiente, Trevisan ainda aborda uma amizade mais "profunda" entre dois amigos. O homossexualismo mostrado em "Paixão segundo João" é praticamente platônico; fosse uma Joana ali, e o roteiro de uma novela das 6 se desenrolaria diante de seus olhos. Em "Os Mil Olhos do Cego", a história já é diferente: o João que reencontra um ex-colega de faculdade já é bem mais decidido sobre o que quer, e não poupa palavras para deixar bem claro quais são suas intenções a um amigo surpreso, sem reação ("Sustento o meu nojo da fêmea. Casei-me por exigência da profissão [...] Toda fêmea é uma flor podre. Sob o perfume a catinga de cadela molhada [...] Os gregos - não eram os persas? - bem sabiam. O velho Sócrates só dormia com um menino nos braços [...] Sempre tive uma fraqueza por você - e, minha boneca, bem sabe disso"). 

Trevisan examina as vicissitudes dos relacionamentos, as paixões mal resolvidas, sem emitir opinião, descrevendo os personagens e seus sentimentos, suas frustrações e medos, ele consegue fazer sua imaginação voar com aqueles pequenos trechos de histórias alheias, que sabe-se lá como prosseguiram e terminaram.