terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Os Escapistas, Brian K. Vaughan, Steve Rolston, Philip Bond, Shawn Alexander e Eduardo Barreto

Ficha Técnica

Título original: The Escapists
Gênero: Quadrinhos
Ano de lançamento: 2007
Ano desta edição: 2010
Editora: Devir
Páginas: 160
Idioma: Português (tradução de Kleber Ricardo de Sousa)

Citação: "Eu não quero que o mundo real transforme o nosso personagem... Quero que ele transforme o mundo real."


Dois dos maiores gênios da era de ouro dos quadrinhos (décadas de 30 e 40), Joe Kavalier e Sam Clay, criaram o Escapista, personagem clássico das histórias de super-herói. Mas depois de alguns anos, seu personagem caiu no esquecimento e deixou de ser publicado. Até ser ressuscitado agora, com extremo sucesso! Bonita história, não?

Só que ela é MENTIRA.

Kavalier e Clay são personagens do romance "The Amazing Adventures of Kavalier and Clay", de Michael Chabon. Ele escreve o que se pode chamar de ficção histórica (estilo do qual Jô Soares se utiliza em seus livros), misturando fatos reais, características de personalidades dos quadrinhos, e criando uma nova mitologia sobre um personagem histórico que nunca existiu.

Como se isso não fosse o bastante, o Escapista realmente chegou aos quadrinhos pelas mãos de grandes artistas. Em 2004 uma coletânea de histórias do Escapista foi lançada (contando inclusive com a última história produzida por Will Eisner), chegando a ganhar um prêmio Eisner em 2005.

Até que, em 2006, Brian K. Vaughan (conhecido por outros títulos em quadrinhos como "Y: O Último Homem" e "Ex Machina", além de ter sido roteirista do seriado "Lost"), resolveu contar outra história, dentro da história. O resultado é este "Os Escapistas".

Max Roth perde o pai e descobre que ele era um colecionador de memorabilia do Escapista. Ele também se torna fanático pelo herói e, depois de receber uma herança, compra os direitos do personagem, resolvendo relançá-lo no mercado. Para isso, conta com a ajuda de Denny Jones, amigo de adolescência, e Case Weaver, a garota descolada que ele conheceu ao tirá-la de um elevador emperrado, e que desenha maravilhosamente bem. Obviamente o clichê de garota descolada / garoto nerd / interesse romântico reprimido aparece na revista, mas não atrapalha em nada a ótima história.

Pois bem, falei da obra de Chabon, e ele assina a introdução do livro. Confesso que comecei a ler tarde num domingo (tudo bem que a segunda era feriado), e fiquei com preguiça de ler aquelas seis páginas. Pois a introdução derreteu todo o gelo do meu coração, apresentando uma história sobre Sam Clay que me fez perguntar "peraí, isso aqui é de verdade?" (foi quando googlei e descobri a ótima história de Chabon). Comecei a ler a história em si com um pouco de sono, pensando em ler uns dois capítulos e parar. Impossível. O sono foi embora e li até o final, madrugada adentro. E Brian K. Vaughan conseguiu, com uma mini-série em seis partes, perpretar uma homenagem aos fãs de quadrinhos, seus personagens clássicos, seus criadores inovadores, enfim, tudo que se relaciona com a nona arte. E ainda achou espaço para criticar algumas grandes corporações que, em prol apenas do lucro, acabam com o trabalho artístico de quem se dedicou a fazer uma obra com o coração. Genial.

O abuso da metalinguagem não se dá apenas no fato de que é uma história em quadrinhos falando de quadrinhos... O personagem de Mat, em certo momento, quebra a quarta parede (em linguagem de quadrinhos, fala diretamente com o leitor), passa por um daqueles momentos espirituais de auto-descobrimento, falando com mortos em sonhos (mais homenagens aos quadrinhos de super-herói), e, ao finalizar uma página desenhada por Case, os diálogos dos personagens da revista do Escapista são trocados pelos deles próprios, seus criadores, mostrando os super-heróis falando de coisas cotidianas (e reclamando quando erram na arte-final!). Outra referência aos leitores de quadrinhos, que já se colocaram tantas vezes no papel de seus heróis.

Case, Max e Denny, por Steve Rolston

A revista é deliciosa, tem um quê nostálgico de algo que todo leitor de quadrinhos já viveu: relembrar as histórias daquele personagem que marcou sua infância. A leitura flui e a vontade de parar não existe, e você ainda se pega torcendo pelo envolvimento entre Case e Max (ok, fui vencido nessa). Para completar, a arte de Steve Rolston retratando os três protagonistas é muito bonita (a Case dele é muito gostosinha, tenho que admitir). Jason Shawn Alexander desenha o Escapista moderno, e Eduardo Barreto e Philip Bond complementam com o Escapista vintage.

Eu recomendaria "Os Escapistas" para qualquer pessoa ler, de qualquer idade, seja fã de quadrinhos ou não. Impossível não se deixar levar pela história que poderia ser a de qualquer um, inclusive você. Ou eu.

Em algum lugar do paraíso, Luis Fernando Verissimo

Ficha Técnica

Gênero: Crônica
Ano de lançamento: 2011
Ano desta edição: 2011
Editora: Objetiva
Páginas: 200
Idioma: Português

Citação: "Mas chega de falar só de mim. Vamos falar de você. Você estava com saudade de mim, estava?"


Verissimo, na minha humilde opinião o melhor cronista brasileiro, não se cansa de produzir bons textos (ao contrário daquele monte de porcaria que circula pela internet e atribuem a ele; por favor, leiam os livros dele). Seu humor refinado não deixa escapar nada, desde o relacionamento, conturbado desde o início, de Adão e Eva, passando por dúvidas existenciais com relação à ininteligibilidade da fala do Pato Donald, até a personagem que não está na peça, mas decide entrar pelo uso de seu livre-arbítrio. 

Esta é a mágica: pegar os eventos cotidianos da vida de qualquer um, como o homem discutindo consigo mesmo os resultados de cada decisão relevante da sua vida em um bar (com todas as versões de si mesmo resultantes de cada opção não escolhida), ou ainda, discussões de casais sobre o que comprar no mercado, ou sobre o que cada um vai levar na separação, e ressaltar um detalhe quase inofensivo, esdrúxulo até, da mesma maneira que fazemos com nossas vidas: pegar os pequenos problemas e transformá-los em tempestade. Quem nunca?

Aliás, quem nunca identificou aquele amigo "que só poderia ter saído de um filme" com um personagem de Veríssimo? E quem nunca se identificou com alguma situação, muitas vezes com um pouquinho de vergonha por se ver em tão ridículo papel? A diferença é que você ainda consegue rir das soluções apresentadas por Verissimo. E talvez se pegue, perguntando, "por que eu não fiz exatamente isso?".

"Em algum lugar do paraíso" começa com Adão perdendo sua paz devido a Eva, passa por discussões de relacionamento, filosofa com cães, dá uma passadinha pelo purgatório, relacionamentos variados, teses bovinas sobre a vida, e vai até o espaço sideral... Em algum lugar do paraíso tem um Deus olhando para suas patéticas criações, e gargalhando de suas desventuras e presepadas. E quando ele se distrai e perde algum detalhe, ele recorre às crônicas de Verissimo para se manter atualizado. Afinal, foi ele mesmo quem criou Verissimo, para que seu suprimento de vergonha alheia nunca se esgote. E Ele gargalha novamente.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

O Pequeno Livro dos Beatles, Hervé Bourhis

Ficha Técnica

Título original: Le Petit Livre Beatles
Gênero: Biografia
Ano de lançamento: 2010
Ano desta edição: 2011
Editora: Conrad
Páginas: 168 (não numeradas)
Idioma: Português (tradução de Dorothée de Bruchard)

Citação: "BEATLE POR UMA SEMANA!
JIMMY NICOL fica no lugar de RINGO em plena beatlemania. Durante os ensaios, estressado, repetiria com frequência:
'IT'S GETTING BETTER?
IT'S GETTING BETTER?'."


"O Pequeno Livro dos Beatles" é a segunda empreitada neste estilo perpetrada por Bourhis. O primeiro foi dedicado ao Rock 'n Roll em geral, mas acredito que as grandes bandas de Rock tem histórias para livros e mais livros... Então, se é para contar a história de UMA banda, por que não começar com A banda?

O livro é vendido como "a história dos Beatles em quadrinhos", mas eu discordo. Apesar de ser todo ilustrado, ele não tem uma narrativa sequencial; na verdade, tem o que eu chamo de "drops", pequenas gotas de informação para serem absorvidas facilmente. Explico: você pode abrir o livro em qualquer página, ler um pouco e encontrará informações que se encerram em si mesmas, diferentemente de uma história em quadrinhos, cujo desenvolvimento da história deve ser acompanhado desde o início para proporcionar entendimento. É um livro para deixar na mesa de centro da sala, e que qualquer visita irá folhear com curiosidade, e parar para ler algumas páginas (difícil é PARAR de ler...).

Mas o fato de não ser uma história em quadrinhos, neste caso, não é nenhum defeito, e sim uma qualidade! A leitura é leve e rápida, e a arte de Bourhis é simples, mas eficiente e dinâmica. Ele ilustra tanto reproduções de capas de discos e revistas, além de fotos famosas (o que é meio brochante, dá vontade de ver os originais), como momentos somente conhecidos por "ouvir falar"...  Ou seja, tais causos ganham vida sob o lápis de Bourhis.

As pequenas referências a canções e suas origens também são mostradas, e o mais fiel beatlemaníaco irá reconhecê-las quando vê-las. Por exemplo, você se perguntou do porquê da citação acima? Tente novamente e verá que mesmo em passagens supostamente bobas, uma parte da história é revelada. Peraí, então esse livro só vai fazer sentido para os já iniciados? Calma, pequeno besouro: são pequenas mensagens que você, após pegar gosto por Beatles e pela música, será capaz de reconhecer na segunda ou terceira leitura do livro (por que lê-lo novamente não será nenhum problema para quem curte Beatles!). E, para quem já se considera PhD em Beatles, é possível encontrar novidades no livro.

(Eu sei que o scan está torto. Agora preste atenção nas letrinhas, óquei?)

Além disso, todos os singles e discos dos Beatles são resenhados, mostrando que Bourhis não é somente um artista, mas um aficcionado pela banda, com direito a nota para cada um. Aliás, o sistema de ranking é charmoso, usando as "Mersey boots" que foram moda na época, ao invés de estrelas.

Pois bem, é só isso? Nãããão. O livro NÃO pára com o desmantelamento do grupo, e segue a vida e carreira dos integrantes até o ano de 2009, com resenhas de álbuns solo, falando das mortes de John e George, e dos horríveis discos de Ringo.

A única ressalva é a falta de numeração nas páginas, tornando difícil encontrar alguma citação ou história; você vai ter que se guiar pelo ano do ocorrido, marcado sempre no alto da primeira página com eventos do referido ano. Mas isso não é um grande problema, ficar folheando e procurando algo no livro é um prazer, além de rápido, como já foi dito. Quero só ver quem não vai correr para ouvir a discografia completa depois de passear por algumas páginas.

O Velho e o Mar, Ernest Hemingway

Ficha Técnica

Título original: The Old Man and the Sea
Gênero: Romance
Ano de lançamento: 1952
Ano desta edição: 2009
Editora: Bertrand Brasil
Páginas: 126
Idioma: Português (tradução de Fernando de Castro Ferro)

Citação: "Imagine o que seria se um homem tivesse de tentar matar a lua todos os dias", pensou o velho. "A lua corre depressa. Mas imagine só se um homem tivesse de tentar matar o sol. Nascemos com sorte."


Hemingway tinha uma teoria sobre a literatura, chamada de "A teoria do iceberg": segundo ele, apenas um oitavo do iceberg é visível; o resto está submerso. Ele acreditava que o verdadeiro significado de uma obra de literatura não deveria ser óbvio, e sim trazido à tona pela experiência da leitura.

"O Velho e o Mar" pode ser resumido assim. Apesar de o livro em si ser bem enxuto, ele não é "raso": lê-lo é um tour de force no sentido de extrair significado das coisas mais simples, de seus símbolos mais inócuos. E o livro é cheio de significado, pois não foi à toa que em 1954 Hemingway ganhou um Nobel.

Para começar, o livro traz Santiago, um velho pescador numa maré de azar. Sem conseguir fisgar um peixe há 84 dias ele sobrevive com o auxílio de Manolin, a quem ele ensinou a pescar, e que foi tirado de seu barco pelo pai devido à sua maré de azar, mas continua tentando, mesmo sozinho; Santiago é um dos últimos representantes dos pescadores tradicionais de Cuba, que ainda se utilizam de meios quase que artesanais para pescar, ao contrário de outros, pescando em barcos grandes, para seus empregadores. Aqui vale o adendo de que Hemingway, assim como George Orwell, lutou na Guerra Civil Espanhola, e decepcionou-se com o Comunismo (sua mão esquerda sempre fraqueja e o decepciona), fazendo com que esta obra acabe se tornando um libelo anarquista (Guanabacoa, reduto anarquista, é citada por Santiago). Mas tal libelo está submerso, naqueles sete oitavos do iceberg, lembra? O contexto histórico do começo dos anos 50 (pós-guerra), as mudanças de direção do vento durante a história, tudo isso tem um peso na interpretação de "O Velho e o Mar".

A história clássica, universal, do herói que supera todos os obstáculos está bem expressa em Santiago; com poucos recursos ele ainda consegue cumprir aquilo a que se propõe, contra um adversário digno: o marlim, magnífico, glorioso, com quem Santiago se identifica, considerando-se "um igual". Santiago é o herói improvável, pelo qual todos torcem mas que não tem certeza de que cumprirá sua missão, afinal, ele é um velho, frágil, e o leitor se solidariza com sua jornada. Além disso, há as referências religiosas, sendo a trindade (o número 3) repetido durante o livro, incessantemente: três sonhos com leões, três dias de pesca, três ataques "do inimigo" (não vou entregar tudo aqui para não estragar sua leitura). Além do próprio nome ("São Tiago"), e de como ele carrega o mastro de seu barco como uma cruz (mas também como uma bandeira da ideologia que defende, a tradição de pescadores que não trabalham para uma grande corporação). Santiago é um mártir, e, como todos os mártires, não escolheu tal fardo, mas o carrega com seus olhos azuis mirando o horizonte.

A bandeira de Santiago, passada a Manolin na forma da espada do marlim, é a da luta de uma minoria oprimida contra o opressor, luta esta não pelo sobrepujamento, mas sim pela dignidade.

P.S.: Tal resenha jamais seria possível sem (e nem está à altura de) as maravilhosas aulas de Literatura Norte-Americana com a mestra Ana Maria Ialago.