domingo, 9 de setembro de 2012

As Crônicas Marcianas (Graphic Novel), Ray Bradbury e Dennis Calero

Ficha Técnica

Título original: The Martian Chronicles: the authorized adaptation by Ray Bradbury
Gênero: Quadrinhos / Romance
Ano de lançamento: 2011
Ano desta edição: 2012
Editora: Globo
Páginas: 156
Idioma: Português (tradução de Érico Assis)

Citação: "Vamos concordar em discordar. De que interessa quem é passado ou futuro, se estamos vivos, porque o que tem de acontecer acontecerá, amanhã ou daqui dez mil anos."


Ray Bradbury, falecido recentemente, não é desconhecido. Seu romance Farenheit 451 até hoje é referência literária, assim como suas Crônicas Marcianas. Não li o romance original, mas essa graphic novel deixou uma boa vontade de fazê-lo.

Apesar da arte de Dennis Calero não empolgar, o fato desta ser a adaptação de um romance, ainda por cima autorizada pelo autor, dá créditos extras ao projeto. O lançamento também é providencial, acerca da curiosidade recente (e crescente) a respeito do planeta vermelho.

A história vai muito além do óbvio. Não é somente sobre explorações, guerras e combates intergaláticos. Aliás, tiros são o que de menos ocorre. Conforme explicado por Bradbury na introdução, ele começou escrevendo contos avulsos, e após uma sugestão de um editor, transformou-os em romance, finalmente conseguindo publicá-lo(s). Porque esta pequena digressão quando falava da ausência de tiros na obra? Pois é justamente esse aspecto de "contos interligados" que dá a tônica geral da obra, apresentando histórias que aparentam estranheza se comparadas individualmente, mas juntas formam um todo coeso e interessante. Aliás, só é possível entender a obra como um todo ao chegar ao seu final, pois ela é subjetiva, meio alucinante (ou seria alucinógena?), em certos momentos (tragi)cômica, e em outros muito séria. 

Os marcianos não são passíveis de uma definição formal, pois de um capítulo para outro ganham características diferentes (só lendo para entender), e a violência se torna um recurso totalmente desnecessário para a obra que Bradbury se dispôs a criar. Não há uma guerra entre marcianos e terráqueos, pelo menos não da maneira que se imagina que uma guerra possa ser.

No final, as crônicas marcianas do título são histórias sobre a busca dos seres, sejam da Terra ou de Marte, não pelo novo, pelo planeta inexplorado, e sim pelo comum, pelo belo escondido no vislumbre de algo simples. Às vezes, até mesmo um vislumbre para si mesmo, ou para o próximo.

(Obrigado pelo presente, Marina!)

27, Kim Frank

Ficha Técnica

Título original: 27
Gênero: Romance
Ano de lançamento: 2009
Ano desta edição: 2011
Editora: Tordesilhas
Páginas: 218
Idioma: Português (tradução do alemão de Eduardo Simões)

Citação: "Tudo parece existir porque eu vejo, porque ouço, porque sinto. Somente porque eu vivo. A alegria do público, seus gritos, o calor de seus corpos, o êxtase em suas veias... eles são a prova de que eu existo. De que eu realmente sou quem sou, de que faço o que faço. Eles são prova do meu mundo. Eles vão escrever e contar por aí que eu existi. Eles são minhas testemunhas. Os espectadores da minha própria encenação bizarra, em que eu sou ao mesmo tempo um ator trágico e cômico. Até que as cortinas se cerrem. E elas vão se cerrar e me enterrar sob elas. Mas eu existi, eles vão dizer. Eu terei sido. Quantos podem afirmar isso de si mesmos?"


Este é o romance de estreia de Kim Frank, alemão (sim, Kim é homem) e músico. Confesso que não o conhecia, nem a sua música, e comprei o livro pela capa (que é maravilhosa) e pela premissa, que parecia interessante. Depois de ler o livro, não tenho a menor vontade de conhecer a música de Frank.

É difícil achar adjetivos para o livro. Infantil? Pobre? Confesso que fiquei muito decepcionado. A começar pelo porco desenvolvimento das personagens. Mika, o protagonista, sequer tem um sobrenome. Ele é um garoto de 18 anos que não tem amigos (pelo menos não se ouve falar de amizades anteriores). Com 18 anos ele toma contato pela primeira vez com Doors, Jimi Hendrix, Stones, faz amizades, toma seu primeiro porre, fuma seu primeiro baseado, entra para uma banda e logo no primeiro show já é capa da Rolling Stone européia! Caramba, esse moleque vegetava antes da história começar?

Mika é fascinado pela morte. Então há certos momentos constrangedores como quando ele tem que entrar em um elevador e entra em pânico (mas entra mesmo assim, e o pânico dura mais fora do elevador do que dentro. Como assim?). A prosa de Frank é fraca, e o livro é quase que totalmente um monólogo em primeira pessoa. Descrições de tudo o que acontece, dos pensamentos de Mika, tudo torna o livro monótono, extremamente enfadonho. Há diálogos imensos, feitos de frases curtas, sem indicação de quem está dizendo o quê. Lá pelo meio do diálogo você está perdido. No começo achei que a intenção do autor fosse essa mesma, mas quando a mesma coisa aconteceu em outro momento, ficou clara sua inabilidade narrativa.

Mika também tem um fascínio pelo número 27 (algo que é porcamente explicado no livro: ele simplesmente tem a mania de converter qualquer número em 27, por meio de contas e associações), mas essa mania só é explicitada quando ele toma conhecimento do "clube dos 27", aquele que reúne os astros do rock mortos com essa idade. Pronto, ele passa a ter a certeza de que vai morrer aos 27. O mais legal é que ele tem medo de morrer, mas não tem problema nenhum em sair por aí e se drogar até os olhos pularem para fora das órbitas.

Frank mistura tudo, e parece se perder, sem conseguir dar continuidade a suas ideias. Há um salto, dos 18 para os 26 anos (talvez nem ele tenha aguentado sua prosa modorrenta e tenha acelerado a história), Mika é um rock star e a história (mal) desenvolvida até então é deixada de lado, para ser retomada mais à frente, quando Mika volta para casa e parece retomar sua vidinha medíocre de 18 anos.

Vários erros de revisão contribuem para piorar a imagem do livro. Parecem erros do Google translator. E o final é um anti-clímax, é bobo como o estilo de Frank, e me fez sentir mais bobo ainda por ter comprado este livro. Talvez ele pudesse ser relevante na vida de algum garoto de 13 anos, que recém descobriu Nirvana e Rolling Stones, mas que, se pegar esse livro ao completar seus 27 anos para reler vai pensar consigo mesmo: "nossa, como eu era babaca por ter achado esse livro tão legal naquela época". Como eu já passei dos 27 há um tempo, só posso me sentir feliz do livro ter apenas 200 páginas e ter sido uma leitura rápida. Se fossem mais páginas, eu teria largado no meio (ou talvez tivesse me matado, desejando ter morrido aos 27 para não ter tido contato com isso).

Guerra Mundial Z, Max Brooks

Ficha Técnica

Título original: World War Z: An oral history of the zombie war
Gênero: Romance
Ano de lançamento: 2006
Ano desta edição: 2010
Editora: Rocco
Páginas: 370
Idioma: Português (tradução de Ryta Vinagre)

Citação: "Havia outro motivo para esta evacuação parcial, um motivo eminentemente lógico e insidiosamente sombrio que, muitos acreditam, sempre dará a Redeker o pedestal mais alto no panteão do inferno. Os que ficassem para trás seriam conduzidos a zonas de isolamento especiais. Seriam a 'isca humana', distraindo os mortos-vivos para que não seguissem o exército em retirada à zona de segurança. Redeker afirmou que esses refugiados isolados e não infectados deviam continuar vivos, bem defendidos e jamais reabastecidos, se possível, para manter as hordas de mortos-vivos firmemente presas ao local. Está vendo o gênio, o caráter doentio? Manter as pessoas como prisioneiras porque 'cada zumbi que sitie aqueles sobreviventes será um zumbi a menos lançando-se contra nossas defesas'."


"Guerra Mundial Z" é uma grata surpresa para aqueles que gostam de histórias de zumbi, principalmente porque ela não é uma simples história de zumbis. Para começar, parte de uma premissa diferente: a guerra contra os zumbis acabou há dez anos, e nós vencemos. Portanto ele conta, em perspectiva, tudo o que aconteceu antes, durante, e o que vem acontecendo após o conflito. Mas, como o subtítulo em inglês diz, é uma história oral, contada pelas pessoas que viveram o conflito. O livro é vendido como uma coleção de entrevistas que não entraram no relatório final entregue ao governo americano, e isso dá um aspecto de "documento oficial" a ele. Essa cara de "coisa real" do livro chega a dar calafrios, pois em muitos momentos você chega a se questionar: e se isso estiver acontecendo de verdade, nesse exato momento?

O narrador, que se diz o entrevistador que coletou todos os depoimentos apresentados no livro, é o único personagem em comum em todas as histórias, embora ele diga que prefira interferir o mínimo possível nos relatos apresentados. Daí que o livro não tem um protagonista, a não ser o próprio conflito em si. Por isso mesmo é até difícil categorizar o livro como um "romance". Também não é um simples livro de contos, já que a história é contada de maneira linear, e as diferentes histórias conversam entre si. O relato de um soldado americano faz referência a eventos narrados por um soldado russo, e por aí vai. Portanto, não é um romance tradicional, e acho que esse é um dos grandes trunfos do livro. Ele é narrado pelos personagens de cada história, de diretores da CIA a civis, de generais chineses a médicos brasileiros. E justamente isso, a exposição aos meandros da politicagem, a burocracia, a burrice dos governantes, dá o quê de real do livro.

O livro conta em detalhes as primeiras infecções, as ações dos governos quanto a isso, e como a infestação se tornou mundial. Fosse por refugiados infectados, ou mesmo o transplante de órgãos com o vírus, ninguém percebeu de onde o perigo vinha. Aliás, quando o perigo foi percebido, ele foi sumariamente ignorado pela alta cúpula de inteligência; somente quando os zumbis estavam mordendo a bunda deles (literalmente) é que ações começaram a ser tomadas. A maneira que Max Brooks descreve esse lado de bastidores do governo chega a ser uma aula de política, e te faz olhar com outros olhos os seus governantes reais.

Empresários da indústria farmacêutica que lucraram com a histeria da infestação zumbi; general chinês que fugiu com um submarino nuclear, para preservar sua família e a dos tripulantes; civis que fugiram para o norte, esperando vencer os zumbis com a neve do inverno; os fracassos do exército nas batalhas contra um inimigo implacável, nunca enfrentado antes: o livro vai muito além do óbvio e não narra somente pequenas histórias de sobrevivência, mostrando tudo o que foi feito, em escala mundial, para que se pudessem vencer os zumbis.

Se há um aspecto ruim do livro, é o excesso de termos técnicos do exército: referências a equipamentos e armamentos do exército, sem uma explicação mais detalhada, faz o leitor ficar boiando em alguns momentos, mas não é nada que atrapalhe a leitura. Muito pelo contrário: tais termos só trazem mais verossimilhança ao livro.

"Guerra Mundial Z" está sendo trazida às telas por Brad Pitt, e eu acredito que pode ser um filme muito divertido, mas que, com certeza, não fará juz ao livro: é um livro sem protagonista, contando dezenas (sim, dezenas) de histórias paralelas. É impossível trazê-lo fielmente às telas e, ainda assim, fazer um produto acessível para as massas. Portanto, não se atenha somente ao filme para julgar o livro.

No final, o que fica mais evidente ao ler este livro é que a guerra contra os zumbis não trará somente um inimigo, os mortos; há outro que está sempre por perto, e que, por sua imprevisibilidade, pode se tornar o mais perigoso de todos: os vivos. Dizem que os verdadeiros amigos só aparecem nas piores horas. Acho que num apocalipse zumbi é quando você realmente descobre quem são seus verdadeiros amigos.

sexta-feira, 13 de julho de 2012

The Walking Dead: A Ascenção do Governador, Robert Kirkman e Jay Bonansinga

Ficha Técnica

Título original: The Walking Dead: Rise of the Governor
Gênero: Romance
Ano de lançamento: 2011
Ano desta edição: 2012
Editora: Galera Record
Páginas: 361
Idioma: Português (tradução de Gabriel Zide Neto)

Citação: "É quase como se as vísceras estivessem caindo do céu, como chuva, em vez de estarem subindo por debaixo das rodas, ou escorrendo pela lataria, ou esguichando da grade frontal, enquanto o Escalade vai triturando os corpos. A matéria líquida se esparrama pelos vidros, ininterruptamente, com o ritmo de um gigantesco cata-vento, um caleidoscópio colorido, um arco-íris de tecidos humanos - vermelho-sangue-de-boi, verde-lodo-de-lago, amarelo-ocre, e preto-piche. Para Philip, é quase lindo."


Você conhece The Walking Dead, certo? Nunca ouviu falar em apocalipse zumbi? Cara, você está correndo um sério risco de vida...

Fenômeno mundial dos quadrinhos e da TV, TWD não poderia deixar de fazer dinheiro com livros também, oras bolas! E por isso Kirkman concebeu este "A Ascenção do Governador" para contar uma outra história de TWD (embora não seja tããããão diferente assim...). Ele contou com a ajuda de Jay Bonansinga, autor experiente de livros de terror. Talvez pela inexperiência de Kirkman com literatura (afinal, escrever para quadrinhos e para a TV é muito diferente). A verdade é que eu não sei bem quem culpar pelas partes ruins do livro, que, convenhamos, são irritantes.

A história começa 3 dias depois da praga zumbi ter tornado o mundo um inferno. Nesse aspecto você tem uma perspectiva diferente da série: os protagonistas Nick, Bobby, Brian, e seu irmão Philip com sua filhinha Penny, foram testemunhas do mundo que eles conheciam se desfazendo diante de seus olhos; os meios de comunicação saindo do ar um a um, com o passar dos dias; a estrutura conhecida com água e energia elétrica entrando em colapso aos poucos; e os mortos voltando à vida, atacando os vivos, e ninguém sabendo o que fazer. A interação da menininha com os eventos à sua volta é algo tocante, e o fato de que os adultos ficam mais vulneráveis por ter que zelar por ela traz uma dinâmica diferenciada às suas ações e decisões.

A história nesse princípio é paralela à série, pois eles também decidem ir a Atlanta procurar o centro de refugiados do qual ouviram falar. Fica parecendo a história da série requentada (afinal, como Rick, eles encontram uma metrópole tomada por milhares de zumbis), mas acaba fazendo um pouco de sentido pois o governador vai se encontrar com Rick e sua trupe cedo ou tarde, portanto eles deveriam ser da mesma região dos EUA. Mas que deixa você com um gostinho de "já vi isso antes", isso sim.

E aí começa a parte ruim. Kirkman e Bonansinga utilizam-se do clichê máximo das histórias de terror e colocam os personagens para fazer as coisas mais estúpidas do mundo, aquelas que você e todo mundo NUNCA FARIA em hipótese alguma, mas é a opção dos personagens. E esse clichê é irritante demais, ofensivo à inteligência do leitor.

Tais idiotices imperam nas primeiras duas partes do livro. Você se pega torcendo pelos protagonistas, mas eles fazem questão de foder com tudo. Vai entender. Mas são essas cagadas seguidas que acabam trazendo a emoção dos confrontos com os zumbis, e também com outras pessoas. Momentos tensos realmente não faltam.

Na terceira parte é que o livro fica interessante. Se até então ele estava morno, a ação toma conta e os conflitos (externos e internos) tomam conta da narrativa, deixando o leitor apreensivo a cada página. O final não é óbvio, e mocinhas de compleição delicada poderão sentir ojeriza a algumas atitudes tomadas por alguns personagens. No final tal dinâmica se resolve, de forma dramática, para moldar a personalidade daquele que virá a ser o grande vilão da série, o Governador.

O livro funciona, então, como um prelúdio para a terceira temporada da série de TV, e também para os aficcionados pelos quadrinhos, mas de nenhuma maneira ele é essencial para o entendimento da história; como dito anteriormente é uma outra história, embora não seja nova em sua essência. Mas o livro serve bem para você que está em crise de abstinência de TWD e quer ver alguns zumbis tendo seus cérebros explodidos. Não é nenhum cânone da literatura ocidental, mas, desde que você mantenha suas expectativas num nível médio, ele fará aquilo que se propõe: proporcionar diversão.

Ah, e na cena final, eu consegui visualizar os eventos em câmera lenta na minha mente, como um filme. É bom quando um autor consegue estimular a imaginação do leitor desse jeito.

Ah, e as cagadas dos protagonistas também servem como aviso de como NÃO agir num apocalipse zumbi. Prepare-se, porque não vai tardar.

domingo, 13 de maio de 2012

A Estrada, Cormac McCarthy

Ficha Técnica

Título original: The Road
Gênero: Romance
Ano de lançamento: 2006
Ano desta edição: 2010
Editora: Alfaguara
Páginas: 234
Idioma: Português (tradução de Adriana Lisboa)

Citação: "Pegou a mão do menino e colocou o revólver nela. Pegue, ele sussurrou. Pegue. O menino estava aterrorizado. Colocou o braço em volta dele e o abraçou. O corpo tão magro. Não tenha medo, ele disse. Se eles te acharem você vai ter que fazer isto. Está entendendo? Shh. Não chore. Está me ouvindo? Você sabe como fazer. Coloca dentro da boca e aponta para cima. Faça rápido e com força. Está entendendo?"


"A Estrada", de Cormac McCarthy, foi uma surpresa para mim. Não conhecia o autor, não sabia do filme, não tinha ideia sobre o que seria o livro além do que estava escrito na sua contracapa quando ele chegou em casa, presente de uma grande amiga (obrigado, Mari!).

O "Vencedor do Pulitzer" no alto chama a atenção. E o livro não decepciona. Ele conta a história de um pai e um filho (que não têm seus nomes revelados), que após um evento apocalíptico tem de viver em um mundo em ruínas, lutando pela sobrevivência. Eles vagam pelas estradas destruídas, tentando chegar à costa, sem saber o que encontrarão.

O narrador é em terceira pessoa, mas não é onisciente, e sim parcial: ele acompanha a figura do pai, e registra tudo pelos seus olhos. McCarthy utiliza-se muito do ambiente que os cerca para descrever os sentimentos do pai, não usando o recurso de revelar seus pensamentos diretamente: num mundo arruinado, com o ar coberto de cinzas e com chuvas e frio constantes, o humor e expectativas do pai refletem o ambiente, o que é bastante interessante ("Ele ficou deitado ouvindo a água gotejar no bosque. Um leito de pedra, isto. O frio e o silêncio. As cinzas do mundo falecido carregadas pelos ventos frios e profanos para um lado e para o outro no vazio. [...] Todas as coisas retiradas de seu suporte. [...] Sustentadas por uma respiração, trêmulas e breves").

Um ponto interessante é que o livro começa de um determinado ponto de sua jornada, sem uma introdução. Aos poucos, o panorama é apresentado e passamos a entender um pouco a situação dos protagonistas. Nesse aspecto o "resumo" da contracapa é ruim, pois ele quebra todo o clima criado por McCarthy no começo do livro, revelando aos poucos a situação em que eles se encontram (se bem que o ponto chave do livro, esse sim é guardado para mais tarde; e que choque!). Mesmo assim, o evento que causou a destruição da humanidade não é explicado, nem quando ocorreu: o homem apenas diz que foi "há anos atrás". Isso faz todo sentido, afinal o narrador acompanha o pai, e ele não é detentor de toda a informação. E também somos poupados de toda aquela tentativa de justificar cientificamente um possível evento apocalíptico, que já estamos cansados de saber de outros filmes.

O livro é arrastado. Na maior parte do tempo, pai e filho vagueiam pela estrada, e sua rotina e pequenas conversas são esmiuçadas. É de se admirar que McCarthy consiga fazer uma obra de algo que, se formos pensar, é extremamente enfadonho. Mas ele escreve bem, utiliza-se de expressões diferentes para descrever o ambiente ao redor, e consegue dar cara nova para o que, aos olhos de pessoas menos talentosas, seriam apenas árvores carbonizadas. Mas também há os momentos de tensão, que geralmente ocorrem quando eles encontram outras pessoas pela estrada. São eventos rápidos e intensos, descritos de maneira tão fugaz que, quando você percebe, a ação já ocorreu. Como na vida, quando dizemos que "foi tudo tão rápido, quando eu vi já não dava mais para reagir". E o que é revelado, logo no primeiro encontro, me deixou de cabelo em pé. E aí é que a grande questão do livro se revela: o que é a humanidade, afinal? Somos definidos pela sociedade em que nos encontramos, ou pelo que queremos ser e como queremos agir? O que é certo e errado afinal? Se ética é um conjunto de leis determinado por uma sociedade sobre a maneira como as pessoas devem agir, quando tal sociedade deixa de existir tais regras ainda se aplicam? Na luta pela sobrevivência, vale mesmo a lei do mais forte? Aliás, vale a pena sobreviver em um mundo cujo futuro é sombrio?

Obviamente o livro não te dará as respostas para tais perguntas, mas fará você refletir sobre elas, e se perguntar "o que eu faria em uma situação assim?". Para quem gostou de "Ensaio sobre a Cegueira", de Saramago, e gosta de "The Walking Dead", o livro aborda temáticas parecidas e pode ser uma boa pedida. E talvez te faça pensar sobre as coisas importantes da vida, e sobre viver e sobreviver.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Os Escapistas, Brian K. Vaughan, Steve Rolston, Philip Bond, Shawn Alexander e Eduardo Barreto

Ficha Técnica

Título original: The Escapists
Gênero: Quadrinhos
Ano de lançamento: 2007
Ano desta edição: 2010
Editora: Devir
Páginas: 160
Idioma: Português (tradução de Kleber Ricardo de Sousa)

Citação: "Eu não quero que o mundo real transforme o nosso personagem... Quero que ele transforme o mundo real."


Dois dos maiores gênios da era de ouro dos quadrinhos (décadas de 30 e 40), Joe Kavalier e Sam Clay, criaram o Escapista, personagem clássico das histórias de super-herói. Mas depois de alguns anos, seu personagem caiu no esquecimento e deixou de ser publicado. Até ser ressuscitado agora, com extremo sucesso! Bonita história, não?

Só que ela é MENTIRA.

Kavalier e Clay são personagens do romance "The Amazing Adventures of Kavalier and Clay", de Michael Chabon. Ele escreve o que se pode chamar de ficção histórica (estilo do qual Jô Soares se utiliza em seus livros), misturando fatos reais, características de personalidades dos quadrinhos, e criando uma nova mitologia sobre um personagem histórico que nunca existiu.

Como se isso não fosse o bastante, o Escapista realmente chegou aos quadrinhos pelas mãos de grandes artistas. Em 2004 uma coletânea de histórias do Escapista foi lançada (contando inclusive com a última história produzida por Will Eisner), chegando a ganhar um prêmio Eisner em 2005.

Até que, em 2006, Brian K. Vaughan (conhecido por outros títulos em quadrinhos como "Y: O Último Homem" e "Ex Machina", além de ter sido roteirista do seriado "Lost"), resolveu contar outra história, dentro da história. O resultado é este "Os Escapistas".

Max Roth perde o pai e descobre que ele era um colecionador de memorabilia do Escapista. Ele também se torna fanático pelo herói e, depois de receber uma herança, compra os direitos do personagem, resolvendo relançá-lo no mercado. Para isso, conta com a ajuda de Denny Jones, amigo de adolescência, e Case Weaver, a garota descolada que ele conheceu ao tirá-la de um elevador emperrado, e que desenha maravilhosamente bem. Obviamente o clichê de garota descolada / garoto nerd / interesse romântico reprimido aparece na revista, mas não atrapalha em nada a ótima história.

Pois bem, falei da obra de Chabon, e ele assina a introdução do livro. Confesso que comecei a ler tarde num domingo (tudo bem que a segunda era feriado), e fiquei com preguiça de ler aquelas seis páginas. Pois a introdução derreteu todo o gelo do meu coração, apresentando uma história sobre Sam Clay que me fez perguntar "peraí, isso aqui é de verdade?" (foi quando googlei e descobri a ótima história de Chabon). Comecei a ler a história em si com um pouco de sono, pensando em ler uns dois capítulos e parar. Impossível. O sono foi embora e li até o final, madrugada adentro. E Brian K. Vaughan conseguiu, com uma mini-série em seis partes, perpretar uma homenagem aos fãs de quadrinhos, seus personagens clássicos, seus criadores inovadores, enfim, tudo que se relaciona com a nona arte. E ainda achou espaço para criticar algumas grandes corporações que, em prol apenas do lucro, acabam com o trabalho artístico de quem se dedicou a fazer uma obra com o coração. Genial.

O abuso da metalinguagem não se dá apenas no fato de que é uma história em quadrinhos falando de quadrinhos... O personagem de Mat, em certo momento, quebra a quarta parede (em linguagem de quadrinhos, fala diretamente com o leitor), passa por um daqueles momentos espirituais de auto-descobrimento, falando com mortos em sonhos (mais homenagens aos quadrinhos de super-herói), e, ao finalizar uma página desenhada por Case, os diálogos dos personagens da revista do Escapista são trocados pelos deles próprios, seus criadores, mostrando os super-heróis falando de coisas cotidianas (e reclamando quando erram na arte-final!). Outra referência aos leitores de quadrinhos, que já se colocaram tantas vezes no papel de seus heróis.

Case, Max e Denny, por Steve Rolston

A revista é deliciosa, tem um quê nostálgico de algo que todo leitor de quadrinhos já viveu: relembrar as histórias daquele personagem que marcou sua infância. A leitura flui e a vontade de parar não existe, e você ainda se pega torcendo pelo envolvimento entre Case e Max (ok, fui vencido nessa). Para completar, a arte de Steve Rolston retratando os três protagonistas é muito bonita (a Case dele é muito gostosinha, tenho que admitir). Jason Shawn Alexander desenha o Escapista moderno, e Eduardo Barreto e Philip Bond complementam com o Escapista vintage.

Eu recomendaria "Os Escapistas" para qualquer pessoa ler, de qualquer idade, seja fã de quadrinhos ou não. Impossível não se deixar levar pela história que poderia ser a de qualquer um, inclusive você. Ou eu.

Em algum lugar do paraíso, Luis Fernando Verissimo

Ficha Técnica

Gênero: Crônica
Ano de lançamento: 2011
Ano desta edição: 2011
Editora: Objetiva
Páginas: 200
Idioma: Português

Citação: "Mas chega de falar só de mim. Vamos falar de você. Você estava com saudade de mim, estava?"


Verissimo, na minha humilde opinião o melhor cronista brasileiro, não se cansa de produzir bons textos (ao contrário daquele monte de porcaria que circula pela internet e atribuem a ele; por favor, leiam os livros dele). Seu humor refinado não deixa escapar nada, desde o relacionamento, conturbado desde o início, de Adão e Eva, passando por dúvidas existenciais com relação à ininteligibilidade da fala do Pato Donald, até a personagem que não está na peça, mas decide entrar pelo uso de seu livre-arbítrio. 

Esta é a mágica: pegar os eventos cotidianos da vida de qualquer um, como o homem discutindo consigo mesmo os resultados de cada decisão relevante da sua vida em um bar (com todas as versões de si mesmo resultantes de cada opção não escolhida), ou ainda, discussões de casais sobre o que comprar no mercado, ou sobre o que cada um vai levar na separação, e ressaltar um detalhe quase inofensivo, esdrúxulo até, da mesma maneira que fazemos com nossas vidas: pegar os pequenos problemas e transformá-los em tempestade. Quem nunca?

Aliás, quem nunca identificou aquele amigo "que só poderia ter saído de um filme" com um personagem de Veríssimo? E quem nunca se identificou com alguma situação, muitas vezes com um pouquinho de vergonha por se ver em tão ridículo papel? A diferença é que você ainda consegue rir das soluções apresentadas por Verissimo. E talvez se pegue, perguntando, "por que eu não fiz exatamente isso?".

"Em algum lugar do paraíso" começa com Adão perdendo sua paz devido a Eva, passa por discussões de relacionamento, filosofa com cães, dá uma passadinha pelo purgatório, relacionamentos variados, teses bovinas sobre a vida, e vai até o espaço sideral... Em algum lugar do paraíso tem um Deus olhando para suas patéticas criações, e gargalhando de suas desventuras e presepadas. E quando ele se distrai e perde algum detalhe, ele recorre às crônicas de Verissimo para se manter atualizado. Afinal, foi ele mesmo quem criou Verissimo, para que seu suprimento de vergonha alheia nunca se esgote. E Ele gargalha novamente.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

O Pequeno Livro dos Beatles, Hervé Bourhis

Ficha Técnica

Título original: Le Petit Livre Beatles
Gênero: Biografia
Ano de lançamento: 2010
Ano desta edição: 2011
Editora: Conrad
Páginas: 168 (não numeradas)
Idioma: Português (tradução de Dorothée de Bruchard)

Citação: "BEATLE POR UMA SEMANA!
JIMMY NICOL fica no lugar de RINGO em plena beatlemania. Durante os ensaios, estressado, repetiria com frequência:
'IT'S GETTING BETTER?
IT'S GETTING BETTER?'."


"O Pequeno Livro dos Beatles" é a segunda empreitada neste estilo perpetrada por Bourhis. O primeiro foi dedicado ao Rock 'n Roll em geral, mas acredito que as grandes bandas de Rock tem histórias para livros e mais livros... Então, se é para contar a história de UMA banda, por que não começar com A banda?

O livro é vendido como "a história dos Beatles em quadrinhos", mas eu discordo. Apesar de ser todo ilustrado, ele não tem uma narrativa sequencial; na verdade, tem o que eu chamo de "drops", pequenas gotas de informação para serem absorvidas facilmente. Explico: você pode abrir o livro em qualquer página, ler um pouco e encontrará informações que se encerram em si mesmas, diferentemente de uma história em quadrinhos, cujo desenvolvimento da história deve ser acompanhado desde o início para proporcionar entendimento. É um livro para deixar na mesa de centro da sala, e que qualquer visita irá folhear com curiosidade, e parar para ler algumas páginas (difícil é PARAR de ler...).

Mas o fato de não ser uma história em quadrinhos, neste caso, não é nenhum defeito, e sim uma qualidade! A leitura é leve e rápida, e a arte de Bourhis é simples, mas eficiente e dinâmica. Ele ilustra tanto reproduções de capas de discos e revistas, além de fotos famosas (o que é meio brochante, dá vontade de ver os originais), como momentos somente conhecidos por "ouvir falar"...  Ou seja, tais causos ganham vida sob o lápis de Bourhis.

As pequenas referências a canções e suas origens também são mostradas, e o mais fiel beatlemaníaco irá reconhecê-las quando vê-las. Por exemplo, você se perguntou do porquê da citação acima? Tente novamente e verá que mesmo em passagens supostamente bobas, uma parte da história é revelada. Peraí, então esse livro só vai fazer sentido para os já iniciados? Calma, pequeno besouro: são pequenas mensagens que você, após pegar gosto por Beatles e pela música, será capaz de reconhecer na segunda ou terceira leitura do livro (por que lê-lo novamente não será nenhum problema para quem curte Beatles!). E, para quem já se considera PhD em Beatles, é possível encontrar novidades no livro.

(Eu sei que o scan está torto. Agora preste atenção nas letrinhas, óquei?)

Além disso, todos os singles e discos dos Beatles são resenhados, mostrando que Bourhis não é somente um artista, mas um aficcionado pela banda, com direito a nota para cada um. Aliás, o sistema de ranking é charmoso, usando as "Mersey boots" que foram moda na época, ao invés de estrelas.

Pois bem, é só isso? Nãããão. O livro NÃO pára com o desmantelamento do grupo, e segue a vida e carreira dos integrantes até o ano de 2009, com resenhas de álbuns solo, falando das mortes de John e George, e dos horríveis discos de Ringo.

A única ressalva é a falta de numeração nas páginas, tornando difícil encontrar alguma citação ou história; você vai ter que se guiar pelo ano do ocorrido, marcado sempre no alto da primeira página com eventos do referido ano. Mas isso não é um grande problema, ficar folheando e procurando algo no livro é um prazer, além de rápido, como já foi dito. Quero só ver quem não vai correr para ouvir a discografia completa depois de passear por algumas páginas.

O Velho e o Mar, Ernest Hemingway

Ficha Técnica

Título original: The Old Man and the Sea
Gênero: Romance
Ano de lançamento: 1952
Ano desta edição: 2009
Editora: Bertrand Brasil
Páginas: 126
Idioma: Português (tradução de Fernando de Castro Ferro)

Citação: "Imagine o que seria se um homem tivesse de tentar matar a lua todos os dias", pensou o velho. "A lua corre depressa. Mas imagine só se um homem tivesse de tentar matar o sol. Nascemos com sorte."


Hemingway tinha uma teoria sobre a literatura, chamada de "A teoria do iceberg": segundo ele, apenas um oitavo do iceberg é visível; o resto está submerso. Ele acreditava que o verdadeiro significado de uma obra de literatura não deveria ser óbvio, e sim trazido à tona pela experiência da leitura.

"O Velho e o Mar" pode ser resumido assim. Apesar de o livro em si ser bem enxuto, ele não é "raso": lê-lo é um tour de force no sentido de extrair significado das coisas mais simples, de seus símbolos mais inócuos. E o livro é cheio de significado, pois não foi à toa que em 1954 Hemingway ganhou um Nobel.

Para começar, o livro traz Santiago, um velho pescador numa maré de azar. Sem conseguir fisgar um peixe há 84 dias ele sobrevive com o auxílio de Manolin, a quem ele ensinou a pescar, e que foi tirado de seu barco pelo pai devido à sua maré de azar, mas continua tentando, mesmo sozinho; Santiago é um dos últimos representantes dos pescadores tradicionais de Cuba, que ainda se utilizam de meios quase que artesanais para pescar, ao contrário de outros, pescando em barcos grandes, para seus empregadores. Aqui vale o adendo de que Hemingway, assim como George Orwell, lutou na Guerra Civil Espanhola, e decepcionou-se com o Comunismo (sua mão esquerda sempre fraqueja e o decepciona), fazendo com que esta obra acabe se tornando um libelo anarquista (Guanabacoa, reduto anarquista, é citada por Santiago). Mas tal libelo está submerso, naqueles sete oitavos do iceberg, lembra? O contexto histórico do começo dos anos 50 (pós-guerra), as mudanças de direção do vento durante a história, tudo isso tem um peso na interpretação de "O Velho e o Mar".

A história clássica, universal, do herói que supera todos os obstáculos está bem expressa em Santiago; com poucos recursos ele ainda consegue cumprir aquilo a que se propõe, contra um adversário digno: o marlim, magnífico, glorioso, com quem Santiago se identifica, considerando-se "um igual". Santiago é o herói improvável, pelo qual todos torcem mas que não tem certeza de que cumprirá sua missão, afinal, ele é um velho, frágil, e o leitor se solidariza com sua jornada. Além disso, há as referências religiosas, sendo a trindade (o número 3) repetido durante o livro, incessantemente: três sonhos com leões, três dias de pesca, três ataques "do inimigo" (não vou entregar tudo aqui para não estragar sua leitura). Além do próprio nome ("São Tiago"), e de como ele carrega o mastro de seu barco como uma cruz (mas também como uma bandeira da ideologia que defende, a tradição de pescadores que não trabalham para uma grande corporação). Santiago é um mártir, e, como todos os mártires, não escolheu tal fardo, mas o carrega com seus olhos azuis mirando o horizonte.

A bandeira de Santiago, passada a Manolin na forma da espada do marlim, é a da luta de uma minoria oprimida contra o opressor, luta esta não pelo sobrepujamento, mas sim pela dignidade.

P.S.: Tal resenha jamais seria possível sem (e nem está à altura de) as maravilhosas aulas de Literatura Norte-Americana com a mestra Ana Maria Ialago.