sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Barba Ensopada de Sangue, Daniel Galera

Ficha Técnica

Gênero: Romance
Ano de lançamento: 2012
Ano desta edição: 2012
Páginas: 426
Idioma: Português

Citação: "Tu não leu aquele conto do Borges que eu mencionei antes né.
Não.
'O Sul'.
Não, não li nada do Borges.
Claro, tu não lê porra nenhuma.
Pai. A pistola.
Bueno.
O pai abre a garrafa de conhaque, enche uma pequena taça de vidro, bebe tudo de uma vez. Não oferece ao filho. Pega a pistola e a analisa por um instante. Aciona o mecanismo que libera o pente para fora do cabo e o recoloca em seguida, como se apenas quisesse mostrar que a arma está descarregada. Uma única gota de suor escorre por sua têmpora chamando a atenção para o fato de que ele já não transpira por todo o corpo. Um minuto antes, estava coberto de suor. Prende a pistola na cintura da calça e o encara.
Eu vou me matar amanhã."

 

Eu fiquei tremendamente interessado em "Barba Ensopada de Sangue" ao ler o primeiro capítulo do livro (disponível para leitura no site da Cia das Letras, e de onde saiu a citação desta resenha) e fiquei tremendamente curioso. Não conhecia Daniel Galera, e agora ele é o autor de um dos meus livros favoritos de todos os tempos. Simples assim. Por vários motivos.

Daniel Galera escreve muito bem. Tem sacadas ótimas em momentos inesperados ("Giram as tampinhas de suas long necks, o gás escapa dos gargalos com interjeições de desdém, brindam a nada específico"), e por isso mesmo não é óbvio. Seu romance começa com uma história intrigante, antes mesmo da história: um prefácio dá a entender que parte da história é baseado em um parente do escritor. A partir daí, começa o verdadeiro mistério, com o pai chamando o filho mais novo para uma conversa, contando da morte misteriosa do pai, um gauchão tradicional da fronteira, que foi morar no litoral catarinense, em Garopaba. O pai pede ao filho para sacrificar sua cadela de estimação, Beta, pois já não tem mais tesão de viver, e não quer que a bichinha definhe até a morte, depressiva. O filho, cujo nome nunca é revelado, contraria o último pedido do pai, larga sua vida em Porto Alegre, e parte para Garopaba, para investigar a morte misteriosa do avô.

Tem tanta coisa para comentar, só nesse parágrafo. Galera não dá nome ao protagonista (que é um professor de natação, e por isso ganha vários apelidos ao longo do livro: nadador, professor), e isso acaba, a meu ver, facilitando uma identificação com ele, já que não há uma identidade definida para o personagem. Além disso, Galera omite o pronome "ele" na maioria das frases, tornando a leitura agradável, não infantil ou repetitiva ("Dá as costas ao oceano e enxerga a praia. Nadou mais longe do que havia calculado. Vê a fileira dos galpões dos pescadores encarando as ondas com suas frentes de madeira cinzenta ou pintada em tons suaves"); ele sabe bem o que faz, torna a leitura ágil e mostra que não é um escritor enfadonho (pelo menos não nesse aspecto). Parece pouco, mas faz toda a diferença. O professor também tem uma doença neurológica que interfere no relacionamento com as pessoas, e acaba sendo um ótimo pretexto para Galera exercitar sua verborragia descritiva, tanto no que tange a pessoas, quanto a lugares; em alguns momentos chega a ser enfadonho (como quando ele descreve a quermesse da cidade), mas nada é por acaso, e poucas páginas depois os motivos das longas descrições se revelam (nesse mesmo caso da quermesse, remetendo a um causo contado no primeiro capítulo). E, é claro, Beta, a pastor australiana que proporciona alguns dos momentos mais emocionantes do livro (os amantes de cachorro vão ficar com o coração na boca), e que tem papel importantíssimo na construção do personagem professor.

A história é linear, mas não necessariamente contínua; há saltos de dias, ou até mesmo semanas entre um capítulo e outro, o que torna a narrativa dinâmica; Galera resume em poucas linhas o que houve de relevante, e já apresenta novos aspectos da vida do professor em Garopaba: suas novas amizades, romances, e suas investigações sobre a morte do avô, apelidado de Gaudério, e que ele percebe ser um assunto proibido na cidade ("A mulher [...] quer saber quem ele é e por que está atrás de informações do avô. [...] Ela pergunta se ele anda fazendo perguntas a respeito do avô por aí e quando ele diz que sim, que perguntou para algumas pessoas, ela quer saber para quem."). Sem cacoete de investigador, e lidando com sua vida pessoal junto a seu interesse no avô, o professor segue sua investigação sem método muitas vezes sem investigar, simplesmente vivendo sua vida à beira da praia. E aí brilha novamente Galera. Em suas conversas despretensiosas, ele nos presenteia com diálogos espetaculares da vida cotidiana, nunca óbvios, sempre interessantes, mostrando que não somente Tarantino consegue construir diálogos relevantes (mesmo quando irrelevantes) e atraentes, desta maneira construindo personagens complexas, mesmo as secundárias. Todas as personagens são ricas e trazem verossimilhança suficiente para acreditar que são reais, com seus defeitos e qualidades, manias e atitudes. E é por meio dessas interações que conhecemos ainda mais o professor, em seus relacionamentos amorosos, a amizade com o budista porra louca Bonobo, e tantos outros pequenos encontros através do livro. Galera não utiliza travessão para indicar a fala das personagens, lembrando um pouco Saramago, mas seu texto é construído de forma clara e nunca há confusão quanto a quem está falando ali, se o narrador ou alguma das personagens. Galera também pincela referências pop aqui e ali (como um filme que "tem o Brad Pitt nascendo velho e morrendo criança"). Tais referências são colocadas naturalmente, nunca soam pedantes, mostrando a categoria de Galera e proporcionando uma localização temporal da história. Juntando tudo isso, os saltos de tempo, as pequenas histórias apresentadas a cada capítulo, o livro vira quase uma coletânea de pequenos contos, que vão se unindo, sendo costurados sutilmente por uma linha maior e mais complexa.

Os relacionamentos amorosos também são parte importante na história do professor, e um dos trechos mais marcantes do livro é quando Galera apresenta a melhor definição que eu já li sobre o que é estar apaixonado: "Fantasia que estão vivendo juntos e tiveram um filho e quanto mais debocha de si mesmo e tenta sufocar essas ideias mais sua mente as elabora e maior é o contraste entre as fantasias e as manhãs que acorda sozinho com o mesmo dia pela frente e com a rotina que normalmente aprecia assombrado minuto a minuto por uma sensação de impotência. Ele se sente doente". Sempre achei uma bobagem as mulheres na faculdade suspirando pelo Mr. Darcy de Jane Austen, mas confesso que me peguei torcendo bastante pelo relacionamento do professor e Jasmim, desde o início, por me identificar muito com ele.

O professor se perde de sua busca primordial, mas acaba sendo trazido de volta a ela, e o clímax da descoberta do que realmente aconteceu com seu avô é cheio de significado. E aí a grandeza da personagem da cadela Beta (que sofre demais nessa busca e, oh, de novo, eu assumo, como eu sofri por ela, junto com o professor!), que se mistura a tudo que foi vivenciado pelo protagonista e o humaniza, mostra sua fragilidade, e a revelação se dá, óbvia e ao mesmo tempo brilhante: a busca pela real história de seu avô não passa de um pretexto, e Galera nos brinda com uma maravilhosa história de busca interior, de crescimento, de descoberta própria. Ao chegar ao último capítulo, mais do professor é revelado, sua complexidade, e defeitos e qualidades, e olhando para o primeiro capítulo (ou, melhor ainda, para o prefácio que passa a fazer mais sentido), você vê toda a jornada que ele precisou percorrer para chegar onde está, para se tornar esse novo homem, ainda o mesmo, e mesmo assim completamente diferente, evoluído. 

Eu poderia continuar escrevendo sobre este livro ainda mais, comentar mais a fundo outras personagens, as notas de rodapé providenciais que Galera introduz em momentos oportunos, os momentos hilários de fazer gargalhar algo... Mas acredito que, para tal, nada melhor do que a própria leitura do livro, para provocar a catarse, a identificação com a história, trazer um ano da vida de um completo estranho que luta para dar significado à sua vida, e acaba nos ajudando a dar significado às nossas próprias. Uma obra memorável, de um dos meus novos autores favoritos.